Diário aberto, 23 de abril, 2020

(Lava-louça arcaica)

27 de março, 2020

A melhor hora para lavar a louça é logo depois de acordar, enquanto a água do café está fervendo, o sol esquenta o piso da sala e da cozinha, há uma motivação para qualquer ideia de vida que vem pela frente, o dia pede ordem, acontecimentos dentro de um só nicho preencherão espaços, tempos, solidões, derrelições. As esquinas da casa serão contornadas inúmeras vezes.

23 de abril, 2020

As taças de cristal devem ser tratadas com delicadeza, sendo as primeiras, para saírem logo do caminho de possíveis esbarrões. A água, a princípio gelada, acorda meus sentidos e posterga meu prazer matinal. O meditativo requer uma fração de ternura, a qual a morneza da água pode providenciar. Em seguida parto para as panelas grandes. Abrir espaço para o que é trabalhoso. Exigem menos detalhismos porém mais força. Muito provavelmente serão novamente usadas em breve até mesmo antes de estarem secas. As panelas são exploradas ao último sumo. As panelas estão sobrecarregadas. A louça não viaja como a mala. Fica em aberto o como amá-la. As manhãs de louça não são alegres, não são tristes, há algo de indiferente em certa morimbundez. Na noite precedente, havia sonhado que aspirava a poeira da casa com a boca. Introjetava a sujeira, apesar de haver me tornado um aparelho de limpeza. Que contrário magnífico se colocava. Os sonhos não me são mais estranhos. Aprendi com eles a concomitância dos opostos. Aprendi a falar de trás para frente, aprendi a desesquecer o que não é lembrado. Comida é sujeira ou é limpa? O nojo é o contrário da fome? Posso colocar a fome na categoria das emoções independentes? Nesse caso, onde colocaria o amor? No ralo da pia.

Decidi me tornar a louça na pia.
Ser louça. Toda ela. Louça é um coletivo, um emaranhado de itens, coisas mais ou menos sujas de sentido. Mais ou menos limpas de restos. Sempre há um resto, algo indizível, algo incomível, ou melhor, não-comido.

Parei de tentar limpar aquilo que não saía na esfregação. Parte da sujeira que era resistente a sabão. Parte da sujeira que fazia parte de mim. Parte de mim que não fora comida, restos pertinentes, talvez resilientes, inarredáveis.

Assim como o sonho, o poema é meu sintoma. Na metáfora está meu recalque. Ao tentar dizer o que não consigo, transporto-me para outros dizeres, mais simples, mais sujos, muito sujos.

São anos de analogias até me tornar essa louça suja.
Algo que não consigo desvendar. Eu sei que esqueci algo, só não sei o quê.

Insisto que não sinto tristeza. Todo o coitadismo medroso que sempre achei me analisar não é o suficiente para desistir. Algo mais está ali. Algo que se escreve sobre o papel do esquecimento. Eu lavo a louça e sujo o papel.

Eu como textos e mais textos e nada sai. Só entra. Filósofos, romancistas, psicanalistas, neurocientistas. Nenhuma merda sai. Talvez não estejam entrando, pois não estou comendo direito. Terei de comer um escritor na real? A única coisa que sai é poesia e ninguém a percebe. Alguns poucos endoidados a notam e nem tentam traduzi-la. Percebe-se que engoliram, sorriem, acolhem, mas não sai mais nada, não saem palavras portuguesas.

O poema é o sintoma. Parece óbvio. Parece simples e fácil, enxergar sintoma em tudo. É uma saída fácil. Difícil é desintomatizar. Impossível. Não há cura. Há transformação, atitude, lucidez, avessamento, reparação, no sentido de reparar. Perceber com atenção. Percebe? Por isso na madrugada densa, onde o silêncio abraça motores de caminhões e geladeiras, e ao fino zumbido elétrico zunindo nos ouvidos, o que me deixa acordado é querer escrever o poema. Ao mesmo tempo não. É mais fácil fugir e dormir. Dormir e sonhar. Guardar o poema no sonho. E acordo com o sol da janela e pensar em café, meter as mãos na louça. Esperar ter conseguido guardar o poema. Pareceu-me propício na hora escura, mas sabia que não, a coisa evapora, se esconde, se emudece. O esquecimento dos sonhos é tão higiênico quanto lavar a comida da louça. Algum dia hei de aprender a não dormir. Os grandes poetas não dormem.

Publicado por cristiano benitez

... sharing some poems and random thoughts...

Deixe um comentário