Sonho inventado

Sonhei que sonhei e o sonho não era meu, era de alguém que não se parece comigo porem tem inconsciente fluido, tipo o que todo mundo tem e não consegue explicar com palavras, pois palavras são somente ancoras, totalmente limitadas no que os sonhos tem a nos dar. Neste sonho andava embaixo d’agua, num lugar não muito profundo porem começando a ficar escuro, um lugar tumultuado com formações sobrepostas, um quadro de El Bosco, nada muito familiar, nada muito simples como as coisas que vemos nas ruas da cidade, mas também nada que me fizesse parar para pensar o que realmente era aquilo. Andava debaixo d’agua com certo desdém àquelas formações e ao oxigênio que respirava, provavelmente, no meu corpo que porta esta cabeça sonhante. Sonhei que de repente aparece-me uma mulher, e vejo que se tratava de um espelho. Como sabem os espelhos embaixo d’água não respeitam a linearidade da luz no ar ou mesmo num vácuo. Mas neste sonho estava tudo bem representado, cabeça sobre os ombros e uma cauda ao redor do pescoço, fina e escamosa, mas que me acariciava de maneira bem leve, como suas mãos esguias, ossudas, com pelinhos tão leves e desafiadores que me dava uma sensação da mais tenra relevância de ser bem recebido em uma cama. Os lençóis eram brancos, talvez o sol já estivesse rompendo através das cortinas, mas o sonho lutava para não interromper o que estava apensa começando. Uma vida humana desperta pode durar alguns segundos somente, as alucinações que me alimentavam naquele fechar de olhos mantinham-me crente, fechado, desprovido de perguntas. Tudo se coloca da forma mais inútil o possível e mesmo assim continuo caminhando com um passar pesado. Este peso exigia tanto esforço que quase me obrigava a acordar, não fosse pela carona num trem gentil, lento e permissivo que passava por ali. Era movido a cavalos, num maquinário rústico, colocados no porão deste navio, muito quente e escuro, com cenouras penduradas em barbantes diante de suas cabeças, fazendo-os mover, exercitar aquela bela musculatura. Começava a ficar excitado ao ver os músculos destacados dos cavalos negros, o calor me fazia suar. Havia um desconforto misturado no tesão. Me extasiava na ideia de que poderia me encher de prazer dentro de uma situação desagradável. O cheiro do estrume não mais me incomodava, o cheiro da morte começava a me excitar ainda mais. Pessoas conhecidas começam a aparecer ao meu redor, muito bem vestidas, me olhando furtivamente, notando que eu não portava calças e que meu pênis estava duro e meus belos seios causavam inveja nas magras mulheres com vestidos de costas abertas. O sol irrompia naquele salão de cristal, o piso de madeira me fazia escorregar e tentava a todo momento me apoiar nas mesas e cadeiras dispostas para uma tal cerimonia. Teria que fazer um discurso para aqueles conhecidos, pessoas do passado, desejos de outrora. Realmente seria importante para mim, mostrar a todos o sucesso que atingi. Antes de mais nada precisava comer aquela bela mulher, não importava se as pessoas fossem notar. Eu podia fazer aquilo, outras pessoas o faziam, tudo sempre termina numa orgia, com roupa ou sem roupa. É para a orgia que sonhamos. Sabia que deveria estar ali, ali era um inferno gostoso. Quem diria que o inferno seria assim? Eu quero e não saio mais. Nunca cansava, nunca dormia. Para que dormir se estava sonhando? Lembro tão bem de tudo que só poderia ser real. Descobri ali, lendo livros e mais livros que a memoria e a mentira são as grandes criadoras de todas as ilusões subsequentes do mundo. Se o diabo não as houvesse nos dado, estaríamos vendo num mundo de absoluto presente, de total haver do que há e me pergunto se todos não ficaríamos totalmente parados olhando para a parede. Ler livros sem perder tempo e escreve-los também. Assim foi minha estada naquela orgia silenciosa. O sexo sujo ao meu redor se solidificava e as transas das pessoas começavam a se tornar objetos naturais. Duas pessoas ali viravam uma grande pedra e bem ao lado uma arvore surgia de um trisal em conectivo sexo oral, muito mais próximo um lago se formava de suor e sêmen, porém tão cristalino, me indicava que a natureza era divina e vencia o mal demoníaco que insistia em nos enganar. A tal inocência da natureza nada a tinha a ver com qualquer beleza. A beleza nunca fora inocente e sem propósito. Lembro-me novamente do livro que havia escrito e pelo qual ganhara o prêmio do discurso não dado. Não houve necessidade de dizer nada aquelas pessoas. Todas haviam lido meu livro, todas tinham o conhecimento absoluto das minhas palavras. Palavras que inventei para expressar o que realmente se passava. Havia muita luz, muita claridade, mosquitos viravam borboleta, perfumes se transformavam em doces elixires, o silencio era a música. E dançava-se. E comia-se, era tudo tão evidente, tão claro, tão absoluto, não era mais necessário falar. Não lembro de emitir uma só palavra durante aquele sonho. Comer era transar, nada era mais erótico do que comer um pato laqueado deliciosamente temperado, suculento. Sexo oral, sexo anal, tudo era gastronômico. O estômago é tão erógeno quanto o clitóris. Espelhos no teto não me fazem reconhecer-me. Não era eu ali sendo. Era algo, muito feminino, muito exuberante, eu queria me comer. Mas não era nem eu que estava sonhando, não era nem eu que estava ali sabendo de tudo. Um medo apodera-se daquela formação, o medo de acordar, a lucidez, ou melhor a consciência estragaria tudo. Estar consciente é a pior das instancias. Não é o topo da montanha. É o sótão do casebre. A festa está no salão. Crianças vão para o porão quando um assassino invade. O matador de ilusões. Ele chega bem sorrateiro, ele simplesmente se impõe. É impossível um peixe respirar fora água. Somente uma teoria milenar poderia fazer-nos pensar na sobrevivência de todos os sonhos. Não há memoria suficiente no mundo. Queimaram a floresta, o inferno é aqui. Há um pavor, uma exasperação perante a possibilidade de acordar e de repente me vejo com vontade de mijar. Estou virando humano novamente?! Anjos não mijam, anjos não cagam. Mijo nas calças, sinto a quentura. A decepção do sentir é onipresente. Tudo passa a ser deceptivo. Nada mais ali é receptivo as minhas belas palavras do todo absoluto e me deparo com uma emergência de algo parecido ao nada. Um nada que vem de cima. Começo a nadar de volta a superfície. Solto todo o ar de meus pulmões. Agora tenho pulmões, fudeu, sou animal novamente. Animal dorme e acorda, animal come e caga, respira e sonha. Preciso respirar, já sinto falta de ar, me bate um desespero, sinto dores no corpo e pressão na cabeça. Já sucumbo as leis da física terrestre, tão humana quanto o conceito de bem e de mal. Saudades do diabo que me serviu aquele Champagne, que falta me fará a melhor festa da minha vida. Uma festa dos sonhos do inferno onde tudo se sabia, onde o gozo não acabava, se transformava em lago, em beleza. E se gozava da beleza, se tocava nela, se olhava se tocava se comia… Como pude ser tão tolo? Não era anjo algum, estava sempre preso a uma carne qualquer sonhada, e agora todo mijado despertava dentro do sonho de alguém. Um cara. Moreno, se via. Os olhos viam um quarto qualquer sem graça. Alguém dorme ao lado. O pau enrijecido também desperta, este alguém se aproxima, há sentidos, há fraqueza, tudo vai se apagando, o desespero já passou, sacudido para debaixo da cama. A lucidez foi dormir, o dia começa e todos os saberes se apagam.

Publicado por cristiano benitez

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