Diário aberto 25 mar 2020

Sonhei que estava acordado e acordei ainda sonhando. Acho que flutuei pelo corredor até o sol da varanda pois não lembro de ter posto os pés no chão. Os frios tacos empoeirados não fazem mais parte das percepções seletivas da minha psique amedrontada. A casa me guarda afavelmente num silencio de pássaros e vento, o tempo brinca comigo como os gatos dominam a lagartixa moribunda, me analisa com calma e me põe sob lentes de aumento de forma que me vejo distorcido de um cômodo a outro e confundo meus membros atrapalhados com as figuras surrealistas que pendem na parede, que pedem para vir até mim e abrir meus olhos até então cobertos por pálpebras enferrujadas de certeza.

Preciso a cada dia transformar números em palavras, minha única forma de sobrevivência é não entender o tempo em termos quantitativos, como o ar que respiro me abre os pulmões, as palavras nectáreas  que profiro ao meu tempo-são, ao meu hoje absoluto, concreto, visível, se comparam às ervas apaziguantes que tomo para espantar o aperto cruciante de ver o tempo retroceder e minguar; ser um bem e não ser, ser alimento e não poder consumi-lo. Preciso a cada dia aprender a me deixar ser consumido por ele, onipresente de muda sabedoria, empunhar a paciência contra os espíritos do dia, desprender-me de um baluarte indumentário e derramar-me suavemente na boca do delírio. O que o vício condena, a loucura liberta.

Publicado por cristiano benitez

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